quinta-feira, maio 05, 2011


Belvedere Bruno entrevista Nilto Maciel


Literacia - Como você vê o atual cenário literário  do país?
NM – Se a literatura nasce dos livros e da leitura, a utilização de livros e leitura se inicia na escola. Portanto, para que uma literatura se faça, é necessário que a escola exista e seja boa. No Brasil, a escola não conduz o aluno ao livro, à leitura. A maioria dos estudantes não sabe ler ou não tem o hábito de ler. O que salva a literatura brasileira é a lei natural que faz com que um menino ou menina se dedique a ler, tome gosto pelos livros e chegue a também escrever. É o caso de Machado de Assis, Lima Barreto e tantos outros escritores de origem pobre. A literatura é a irmã desprezada da família das artes. Aquela que os pais desprezam, os padrastos rejeitam, os vizinhos escorraçam, a polícia prende e machuca, os homens no poder chamam de loucos. Tirante um ou outro Paulo Coelho, não há um só escritor brasileiro que consiga se alimentar uma vez por dia, se depender da venda de seus livros. Todo escritor tem uma profissão: médico, advogado, funcionário público, bancário, etc. Apesar disso, temos tido ótimos escritores, que podem ser postos ao lado dos grandes do mundo. Talvez não tenhamos nenhum do tamanho de Camões, Dante e Shakespeare. Com o surgimento da Internet, este quadro tende a melhorar. O estímulo a ler e escrever é muito maior hoje. Assim como a publicar.
        
Literacia  - Lembra de seu primeiro instante poético?

NM – Meus primeiros passos na leitura de poesia se deu na escola. Não no curso primário (primeiro grau), mas no secundário (antigo ginásio, equivalente hoje ao período que vai do sexto ao nono ano). Os livros de português traziam trechos de romances, contos e poemas. Os mais curtos, como sonetos, vinham na íntegra. Decorei diversos deles, como “Última flor do Lácio, inculta e bela, / és, a um tempo, esplendor e sepultura: / ouro nativo, que na ganga impura / a bruta mina entre os cascalhos vela...”. A cada aula se estudava um daqueles textos, quase sempre de clássicos: do arcadismo até o início do modernismo. Cedo me apaixonei por eles. Lia-os com muito prazer. Além disso, dois de meus irmãos (Amadeu, rapaz, e Ailton, adolescente) também escreviam poemas. E eu passei a imitá-los. Da imitação passei à criação.

Literacia - Na atual enxurrada de lançamentos literários, há precipitação por parte do autor, já que nem sempre a qualidade está presente? 

NM – É natural a precipitação no escritor jovem. Coisa da idade. A gente só percebe a imaturidade quando se torna maduro. Ou seja, ninguém se vê imaturo. Há e sempre houve bons escritores jovens. Os exemplos são muitos: Castro Alves, Álvares de Azevedo, Rimbaud. A maioria, porém, é aprendiz mesmo ou nunca passará disso.

Literacia - A poesia  tem lugar nos dias atuais?

NM – Poesia (arte literária) não é para muitos. A literatura, em suas variadas formas, também não é. Se romance é o gênero mais lido, não quer dizer que sejam os romances os melhores livros. Os poetas são raríssimos, os leitores de poesia são poucos. Não sei se mudará par melhor. Talvez mude para pior: quando tivermos vinte bilhões de seres humanos, teremos cem poetas e cem leitores de poesia.

Literacia - Fale sobre  o seu processo criativo.

NM – Parece-me que a criação literária se faz num processo lento, em cada escritor. Semelhante ao da formação do solo. Camadas e camadas de areia, metais, húmus, vão se acumulando, ao longo do tempo.  É a acumulação da memória. Dela surge a obra de arte. Por outro ângulo, não sei como surge em mim a idéia primeira de uma obra. Só sei que vem da memória (leituras, músicas, pinturas, falas, gestos, atos, etc). Ocorre um estalo, como um sismo no solo mental. Sinto o abalo, assusto-me e espero a calmaria. Desligo-me da realidade num instante (não por querer, mas por imposição daquela síncope - fragmentação dos sentidos, corte abrupto no roteiro real) e me sinto possuído por uma nota musical, uma palavra, uma frase, um gesto, um olhar, uma luz - como numa descarga eletromagnética – e sou impelido a criar, a escrever. Nem sempre escrevo logo aquilo. Desligado da realidade (pode ser durante um almoço, no decorrer de uma festa, num cinema, no meio da multidão, na solidão da latrina, na cama (durante o ato sexual também), abato-me, desprego-me do meu chão (nem suponho o que se passa ao meu redor) e voo por universos estranhos (mas não tão estranhos, pois estão na memória). O conto ou o poema ou a crônica ou seja o que for se forma, lentamente. Ás vezes de uma só vez (como um ser que nascesse pronto em um minuto, logo após o coito). Anotado, vira poema, conto, crônica, etc. Nos dias seguintes, sofrerá arranjos (não de conteúdo, mas de forma).   

Literacia - Como se vê, sendo apontado como um dos grandes nomes na literatura nacional?

NM – Alguns leitores (raríssimos) de meus contos, poemas, romances e crônicas me chamam de bom escritor. Consciente que sou de minhas limitações e das de outros escritores, vejo-me como um bom escritor em formação. Ou seja, não fui precoce, não serei gênio.


Literacia - O Ceará é terra fértil em bons escritores. O governo contribui de alguma forma  com eles e para  a vida cultural na cidade?
NM – Os escritores sempre estiveram próximos dos poderosos. O Estado é necessário em todos os sentidos. Para patrocinar publicação, divulgação, leitura, etc, é mais necessário ainda.

Literacia - Que tipo de trabalho  você elabora no momento ?

NM – Estou sempre em efervescência, como um vulcão. Ando, paro, leio, penso, durmo, sonho, sempre em ebulição mental. Esboços de contos e crônicas surgem de vez em quando. Nem tudo anoto ou levo adiante. Agora tenho esboçado um conto (recriação de um conto que perdi há anos): Escrito, em primeira pessoa, por um cientista, como base para o relatório que deverá apresentar à comissão científica de que faz parte. Relata (sua estupefação, sua alegria, sua reação diante de cada descoberta) os trinta dias de convivência de duas famílias numa mansão. Famílias de idêntica conformação: pai e mãe de cerca de 40 anos cada, filho e filha adolescentes, duas filhas e dois filhos crianças. Além disso, há alguns meses elaboro um romance. Tenho 17 pequenos capítulos prontos. Só o início.
  

Literacia  - Já pensou  em ver um conto seu encenado em palco ou filmado?
NM – Um de meus romances, O cabra que virou bode, foi transfigurado para a tela (curta). Em palcos de escolas, alguns contos foram dramatizados.  Tenho dois poemas dramáticos (autos) publicados apenas na Internet e nunca encenados. Um é fantástico (estátuas que adquirem vida) e outro histórico-social (padre Cícero e seu boi santo).

Literacia - Há algum tema recorrente em sua escrita?

NM – Parece-me que os temas da solidão e da velhice, da saudade da infância, da perda (morte, principalmente), do sexo fora do casamento, da miséria social (poderosos e oprimidos) são os mais frequentes em minha obra.


Literacia - O que  diria  para aqueles que desejam se iniciar na vida literária?

NM – Façam mais do que fiz: leiam muito desde cedo, escrevam muito (como exercício), mas não se matem de desgosto, se não chegarem perto de Fernando Pessoa, Machado de Assis e Kafka.


NILTO MACIEL nasceu em Baturité, Ceará, em 30 de janeiro de 1945. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77 e regressou a Fortaleza em 2002. Edita a revista Literatura desde 91.
Ganhou alguns prêmios literários: “Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica; “Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com Pescoço de Girafa na Poeira; "Eça de Queiroz", 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com Vasto Abismo.
 

Um comentário:

  1. Parabéns e Obrigada a Nilto Maciel e Parabéns Bel, por conduzir esta brilhante entrevista.
    Abs,anamerij

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