sábado, junho 26, 2010


Belvedere Bruno entrevista Serginho Poeta 

Poeta de origem pobre, nascido na periferia... "onde está a gente sobrevivente que sofre as mazelas de toda sorte. Mazelas causadas por um sistema extremamente injusto seja do ponto de vista político, econômico ou sócio-cultural. Nela, periferia, onde estão as histórias dos dramas da gente que da luta não foge, não medra; da gente que verga mas não quebra. Nela, periferia, onde está a tristeza e a alegria do viver da gente que é, de valor, rara e que é da vela da vida a chama. Nela, periferia, onde está a gente dos morros erigidos das pedras - gente autêntica, gente quilombola...*
 A Entrevista


 1. Conte-nos um pouco  sobre sua vida, iniciando por sua infância. 

Minha infância, a princípio, foi difícil, pois meu pai não quis saber de mim e minha mãe, muito jovem, não podia ficar na casa dos pais porque naquele tempo para a maioria das pessoas mãe solteira era quase a mesma coisa que prostituta. Aí fomos parar em um barraco de madeira lá na Favela da Cachoeirinha. Dona. Cely lavava roupa pra um time de futebol pra comprar leite pra mim, já que o dela tinha secado. Uma vizinha, negra, que tinha dado à luz há pouco tempo ajudou a me amamentar. Uma vez ouvi numa palestra sobre a primeira infância que a criança enxerga primeiro de tudo os olhos de quem a amamenta, talvez meu encanto pela cultura negra venha daí também.
Depois minha avó Nelsina ajudou a cuidar de mim também e minha mãe conheceu meu padrasto, José, cabeleireiro, comunista, e ele me criou como um verdadeiro pai me deu todas as condições para crescer bem, mas tanto trauma na infância me tornou um adolescente meio problemático. Dei muito trabalho pra minha mãe, levei seis anos a mais do que devia para terminar o ensino fundamental e o médio, não tinha perspectivas profissionais, os empregos que eu arranjava eram sempre ruins porque o que eu queria mesmo era ser jogador de futebol. Depois de adulto fiz de tudo, feirante, motoboy, barman, ajudante de pedreiro, etc.
Hoje sou casado, pai de um menino de onze anos e educador social. Tenho um irmão quinze anos mais novo do que eu que é como um filho.

2.  Que caminhos  te proporcionaram a superação dos obstáculos [diga quais foram] que enfrentou?

Primeiro a sorte de minha mãe não ter me dado para um orfanato e ter lutado e encontrado um bom companheiro. Dos três anos, quando minha mãe conheceu meu padrasto até os dezesseis mais ou menos tive uma vida boa, mas aí vieram as cobranças por um emprego, na escola, e eu iludido com o futebol ia deixando tudo pra depois. Depois a fase pior foi quando a criminalidade aumentou muito na região em que morávamos próximo ao Capão Redondo, fui vendo alguns de meus amigos se tornarem ladrões ou traficantes e muitos deles morreram ou pegaram longos anos de cadeia. Pra completar os comerciantes locais bancavam justiceiros para fazerem “uma limpeza” no bairro e os caras andavam na maior cara de pau fazendo ronda pra matar quem eles achassem que não prestava. Também tenho amigos por aqui que nunca se meteram em nada ilícito, que hoje são formados, com casa própria, família constituída, e quantas vezes eu e esses já tivemos que correr desses bandidos. Já imaginou? Carros cheios de homens armados rodando as ruas e a polícia nem aí? Nessa época os bairros do Jardim Ângela, Capão Redondo e Parque Santo Antônio ficaram conhecidos como “Triângulo da Morte.” Assim, desvalorizaram-se os imóveis e quem morava nessa região dificilmente conseguia emprego, a menos que mentisse. A imprensa só falava das chacinas que ocorriam. As ruas eram de terra e a gente tinha que por uma sacola de mercado no pé para chegar até o asfalto e não chegar à Avenida Paulista todo enlameado.
Digo sempre que as grandes motivações que tive para ir em frente foram o exemplo de luta da minha mãe, as convicções políticas do meu padrasto, que resistiu à tortura na época da ditadura militar, e outro grande incentivo foram os Racionais, em especial o Mano Brown que cantava na rádio os dramas que a gente passava. A partir disso, nosso bairro foi sendo visto por outro olhar, as pessoas passaram a se posicionar mais. Ainda não está bom, mas muita coisa vem sendo feita. Onde era o Triângulo da Morte, hoje é um dos maiores pólos da cultura popular no Brasil.


 3. A favela promove a opção pela criminalidade?

Não diria a favela, diria o capitalismo, porque se fosse a favela não existiriam tantos criminosos na alta sociedade, tanto sonegador de imposto, estelionatário, usurpador do dinheiro público...
Claro que se você tem uma estrutura familiar ruim, uma escola que desistiu de educar, uma mídia que te faz acreditar que você só será bem sucedido se usar o produto tal, não vai querer sair de casa às 5 da manhã, pegar ônibus lotado e ganhar 500 reais por mês, não é? Tenho muitos amigos que cresceram nessas condições e se tornaram ótimos profissionais, como o caso do Marco Aurélio que hoje é executivo na Samsung, mas esses, sem exceção, tinham uma boa estrutura familiar, apesar das dificuldades. Pais atentos aos filhos são fundamentais para que não se tornem bandidos, seja na classe mais pobre ou na mais abastada.

4 . O  que considera primordial para que se inicie o processo de  cidadania?

Em primeiro lugar, comida na mesa, sem discussão. Depois, acesso à cultura e participação política nas questões mais simples ou nas mais complexas. O cidadão é aquele que se posiciona. A educação precisa ser revista urgente. Temos uma escola da época da Proclamação da República, com valores que não são os nossos, por isso os alunos não estão nem aí. A escola precisa ser regional e ser tocada pelo povo e não por um secretário de educação ou ministro que não conhece o povo.

5. Quando e como surgiu seu instante poético?

Acho que sou poeta desde sempre. No livro “Confesso Que Vivi”, Pablo Neruda diz que os meninos lhe achavam estranho. Sem fazer comparações, é claro, também era visto como um menino estranho. Encantava-me com joaninhas, ficava perdido horas e horas olhando as nuvens, coisas assim. Mas o momento exato em que escrevi o primeiro verso foi em uma noite em que a lua estava cheia e eu pensando em uma menina que gostava e fiz um verso. Tinha dezenove anos. Pouca coisa que escrevi nessa idade eu aproveitei. Depois fui muito influenciado pelos compositores de samba, pelos poetas Ferreira Gullar e Castro Alves e como já disse, pelos Racionais. Meus poemas têm um pouco de tudo.

6 . De que forma busca através de seu trabalho como educador, e da sua poesia, mais justiça social?
Eu acredito que uma coisa completa a outra. Não saberia viver apenas da literatura e nem sem ela. Através do meu trabalho como educador, já que trabalho com crianças com uma infância parecida com a minha, cheia de traumas, procuro fazer com que se tornem seres críticos, que vão além do senso comum e que percebam que podem e devem ser os agentes da mudança que desejam em suas vidas. A poesia é natural, falo o que sinto, não há nela um propósito bem definido, mas este propósito nasce do fato de que eu sinto o que todos sentem. Tem um poema meu que fala de um homem que falta ao trabalho para ver as coisas que não vê diariamente, como o movimento do bairro durante a semana, o filho, etc. Um cara que eu nem conhecia leu meu livro e um dia chegou até mim e disse que chorou ao ler o poema, porque quase não tinha tempo pra ver o filho. È isso, a poesia é para compartilhar tristezas e alegrias, se através desta partilha eu conseguir despertar alguém para a necessidade de justiça, fico satisfeito.

7 . Como vem evoluindo o seu trabalho?

Vem evoluindo bem. Tanto o de educador como o literário. Tenho aprendido muito com as crianças e jovens que trabalho e executado muitas coisas na literatura. Sou chamado para participar de debates, para ir às escolas, pus em prática, junto com o Binho, meu parceiro no livro “Donde Miras – Dois Poetas e Um Caminho”, um sonho ir a pé de cidade em cidade fazendo saraus. Batizamos o projeto de “Expedición Donde Miras”, o nome em espanhol e porque nosso livro é bilíngüe e pretendemos ir até o Chile. Já andamos mais de mil quilômetros, fazendo inclusive São Paulo – Curitiba e Santos – Paraty, a pé mesmo, e mais de cem pessoas já caminharam com a gente. Hoje o projeto é compartilhado entre umas vinte pessoas, desde o planejamento à execução.

9.  Tem apoio de algum segmento da sociedade?

Sim, tenho apoio das pessoas que me ouvem nos saraus, que me pedem para declamar nas esquinas, no ônibus, dentro do bar, durante o trabalho. Nenhum apoio pode ser melhor do que este incentivo. Já a Expedición tem o apoio de algumas cidades por onde passamos.

10. Serginho por Serginho:

Sou um homem de pedra que escreve poemas que assustam aqueles que me fizeram de pedra. Em minhas mãos pousam pássaros de papel que se alimentam das palavras que espalho e voam para horizontes aonde eu não chego.

11. Deixe uma mensagem para os leitores.

Se quisermos um mundo mais justo temos que abdicar de alguns confortos, de alguns privilégios. Se quisermos um mundo mais justo temos que por em prática a ótica do todo, porque ninguém nesse mundo é sozinho. Precisamos romper com os individualismos para o bem de toda a humanidade.


Parabéns Serginho Poeta,
por sua trajetória vitoriosa,por seu exemplo de vida.
Sucesso!
Obrigada pela Entrevista.
Belvedere Bruno
 

         Quem é Serginho Poeta:
[Serginho Guerrilheiro Cultural na Cooperifa]
                  Serginho Poeta nasceu em São Paulo, em 27 de junho de1970. Rejeitado pelo pai, foi registrado Sergio Luis Lima de Oliveira, recebendo apenas o sobrenome da mãe, Cely. Nos primeiros meses de vida morou na favela da Cachoeirinha, zona norte da cidade, passando depois a viver com a avó.
         Mais tarde, sua mãe veio a conhecer José Mesiano, - que lhe acrescentou depois o sobrenome - proprietário de um salão de cabeleireiros e militante do partido comunista. O espírito revolucionário do padrasto forjou a personalidade de Serginho e foi sob sua influência que o poeta teve seu primeiro contato com a leitura, por meio da obra de  Monteiro Lobato.
      Depois de morar em diversos pontos da cidade, a família
adquiriu uma casa no Parque Santo Antônio, próximo ao Capão Redondo. Ao mesmo tempo em que a vida na periferia trouxe à vista do poeta um cenário de exclusão, injustiça e preconceito, aproximou-o de novos valores e referências culturais, entre elas, o samba dos botecos e o rap dos jovens de sua idade.        Descobriu a poesia nas canções do primeiro disco de Zeca Pagodinho, comprado em sociedade com o amigo Adoaldo. Mais tarde, ao ouvir a música dos Racionais MC's e ao ler os poemas de Ferreira Gullar e Castro Alves, Serginho identificou-se com a expressão artística inspirada na realidade social. Seus versos narram episódios pessoais e corriqueiros, vistos sob um olhar atento a questionamentos sócio-culturais e, sobretudo à capacidade do ser-humano de superar os obstáculos da vida cotidiana.
           Em 1998, casou-se e teve um filho, Hector. Em 2001, aos trinta e um anos, conheceu a "Comunidade Samba da Vela", projeto cultural realizado no bairro de Santo Amaro. Em uma noite memorável, por sugestão de um dos organizadores, Magno de Souza, o então motoboy declamou "Negro Poeta de Esquina" e, a partir deste dia, foi batizado Serginho Poeta e passou a integrar as apresentações do grupo.       Serginho atualmente cursa ciências sociais na Escola deSociologia e Política de São Paulo (ESP) e continua morando no mesmo Parque Santo Antônio, de tantas alegrias e sofrimentos, próximo ao filho, aos pais e amigos.
[Serginho e Nathan (aluno do Maluhy)]

O que se diz de Serginho Poeta:

 Primeiramente, quero externar a você leitor(a) que ao receber do amigo e companheiro Serginho Poeta o pedido para que eu viesse a prefaciar a edição de sua primeira coletânea de poesias, me vi acometido de imensurável surpresa e agradabilíssima satisfação, devidas ao fato de que nutro, tanto pela pessoa como pelo trabalho, grande respeito.
      Ressalto que me vi também tomado da conseqüente responsabilidade que tal incumbência traz em si, à qual, todavia, uma vez que me foi dada a honra, não havia porque e tampouco passaria pela mente negá-la.
             Eis que, passado então algum tempo, desde o momento em quese deu o honroso pedido, me pus a pensar em como daria cabo da situação, como faria para, pela primeira vez, viver a experiência de prefaciar algo que a meu ver, e penso que não só, tem tudo para se tornar o ato primeiro de uma peça de inúmeros outros a se comporem numa obra anunciada.
               Obra que, para aqueles que porventura têm e ou tiveram o privilegio de conviver com a pessoa fantástica deste nosso Poeta, de ler seus escritos ou ouvi-lo declamando-os, decerto não há dúvidas se fará realizar - para o bem de todos os que possuem alma e coração militantes, guerrilheiros.

                Ao começar a tracejar o que viria a ser este preâmbulo, me veio a lembrança de quando conheci o Serginho. Lembro-me de quando passei a freqüentar, nas noites de segunda-feira, ainda lá na rua Antonio Bento, no bar Ziriguidum, a incipiente roda de samba da Comunidade Samba da Vela de Santo Amaro. O local, que possuía uma peculiar magia, era ponto de encontro de sambistas, poetas e outros dentre os quais diversos embebidos de propósitos e ideais centrados na militância política e sócio-cultural. E,dentre estes, ia se sobressaindo o nosso Poeta que se tornou um dos ícones maiores daquela Comunidade.

              Não sei dizer ao certo qual a primeira poesia que ouvi o  Serginho declamar, o que também faz com maestria, se: Negro: Poeta de  Esquina ou a que conta a saga do Negro Jesus do Vigário – ambas fantásticas.

   Contudo, a bem da verdade, e o que de fato importa é que como os demais  privilegiados, brindados com o singular instante, fiquei admirado com a força e contundência das palavras nelas contidas. Encantou-me a facilidade com que ele consegue retratar cenas do cotidiano e passá-las de modo a não deixar dúvidas sobre com quem, para quem e de onde fala. Nem sobre suas intenções.

                   É interessante notar (difícil não fazê-lo) a constância com que a questão social se faz presente. Mas que se atente e se perceba que a mesma se apresenta, porém, refletida e expressada, e isso faz toda a diferença, por alguém da e na periferia. Nela, periferia, onde está a gente sobrevivente que sofre as mazelas de toda sorte. Mazelas causadas por um sistema extremamente injusto seja do ponto de vista político, econômico ou sócio-cultural. Nela, periferia, onde estão as histórias dos dramas da gente que da luta não foge, não medra; da gente que verga mas não quebra. Nela, periferia, onde está a tristeza e a alegria do viver da gente que é, de valor, rara e que é da vela da vida a chama. Nela, periferia, onde está a gente dos morros erigidos das pedras - gente autêntica, gente quilombola.
                          E é assim, do seu modo um tanto engajado, que segue o Poeta narrando as agruras dos negros poetas de esquina nas noites dos Guetos  e as dos negros crucificados/chacinados nos Vigários; delatando esse  crescente e nefasto Abismo Social que segrega, oprime e inviabiliza o amor  em nome do qual compõe seus gazéis; firmando e afirmando seu "sagaz pensamento", sua "alma desnuda" e a sorridente aura contra o Ciclone;  lutando a luta que é dele, mas que também é sua leitor(a), e que é    minha...
 É nossa.
      E a isto podemos reafirmar à nós mesmos mediante os atos de ler e (a quem porventura a sorte tocar) ouvir declamada à Poesia de Serginho (por  ele, o próprio), por meio da qual se é possível ouvir aos gritos dos  oprimidos, aos gritos de todos aqueles que anseiam por um mundo melhor  um   mundo menos desigual.

       Claro que a este clamor só o ouve quem a tal se  permite - quem à "alma desnuda".
       Com a certeza de que ficará à mercê de uma brilhante e singular leitura, vou abreviando com este parágrafo a minha participação, deixando assim que  você leitor(a) possa de vez mergulhar neste oceano de incisivas palavras  do  qual com toda a certeza não emergirá sem que adquira ao menos algumas  marcas  na alma. Ou que possa voar tão alto quanto um "Balão (...) Destinado.
 Soberano.
Sob o céu, sobre o oceano."

 [*Josselito Batista de Jesus - Selito SD  (Compositor, músico e Geógrafo, formado pela USP/SP. Fundador do "Projeto Nosso Samba", de Osasco.)

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