sexta-feira, julho 30, 2010


 

Um dos homenageados pelo Troféu Sinhá Olympia é o poeta Affonso Romano de Sant’anna. Nascido em Belo Horizonte, autor de livros como “Poesia sobre Poesia”, “Que País é Este?” e “O homem que conheceu o amor”, é também um homem de ação, atuando como Presidente da Biblioteca Nacional, Criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reúne 3.000 instituições e o PROLER ( Programa de Promoção da Leitura), que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios em 1991 lançou o programa “Uma biblioteca em cada município”. Por conta deste trabalho, incentivou os contadores de histórias a contribuírem para o incentivo à leitura.

Affonso Romano de Sant’Anna concordou em responder algumas poucas perguntas sobre ser um escritor e é claro, sobre a leitura.


Aletria:  Dia 25 é o dia Nacional do Escritor. O senhor escreveu que o escritor é um individuo de utilidade pública. O senhor é não só fez a utilidade pública da criação literária, mas a utilidade pública como diretor da Biblioteca Nacional. Qual das duas atividades lhe dá mais orgulho no dia de hoje? Os livros que o senhor escreveu ou o serviço na Biblioteca Nacional?

Affonso Romano de Sant’Anna: Primeiro devo esclarecer que há também escritor  que é uma "inutilidade pública" e  até se rejubila com isto. Não sou modelo de nada, mas sou assim, acho que o escritor escreve para si e para os outros. Por temperamento, e até para minha saúde mental, sempre tive ímpetos de juntar teoria e prática. Fazer e escrever se complementam. Por isto, aqui e ali uso o verbo: escreviver.

Aletria: Uma pesquisa realizada em 2008 pelo Proler, “Retrato da Leitura do Brasil”, constatou que 73% dos brasileiros não freqüentam uma biblioteca, que é a fonte mais barata de livros. Há algo de errado feito nas bibliotecas para atrair os leitores? Ou já é um sinal dos tempos, quando revistas, jornais e a internet são fontes mais constantes de leitura?

Affonso Romano de Sant’Anna: Há vários erros. Imagine que o Lucio Costa quando desenhou Brasília, esqueceu de planejar uma biblioteca pública- conforme relata Edson Nery da Fonseca. Os prefeitos e governadores que conheci  quando dirigi a BN não sabiam que deveriam botar no seu orçamento compra de livros. Ou seja, é uma falha cultural: assim como é raro aparecer um livro numa telenovela  e num programa de televisão, o livro não faz parte da paisagem da elite  brasileira. Assim fica difícil  lidar que a não-elite. Só agora estamos conseguindo botar uma biblioteca em cada município e começa a haver uma mudança grande com os "mediadores de leitura" que ocuparão um vasto espaço social e cultural. E aí, aliás, os contadores de estória são fundamentais.

Aletria:  Uma das razões pela qual o senhor será homenageado pelo troféu Sinhá Olympia é o incentivo que o senhor prestou quando diretor da Biblioteca Nacional à literatura oral. Existe uma discussão constante se a “Contação de histórias” é capaz de incentivar ou não a leitura. Qual a opinião do senhor e por quais motivos tem esta opinião?

Affonso Romano de Sant’Anna: Os que, desinformados ou de má fé, desmerecem  a “contação de história" primeiro, dão prova de ignorância. Não conhecem a história da cultura e a história da leitura. Não leram sequer o livro do Manguel sobre leitura, não têm experiência de campo, devem estar assumindo tal posição como política literária. Seus argumentos não resistem a dois minutos de conversa. O exemplo dos grupos de contação de estórias, no mundo inteiro, é entusiasmante e nos diz que isto funciona em sociedades primitivas e civilizadas. Vocês que participam de festivais internacionais sabem bem disto. A oralidade é uma técnica de alavancar a leitura de livros.

Aletria: Tenho uma teoria que o Dom Quixote é mais que um livro; é um ritual transformador. A leitura do Dom Quixote transforma leitor em escritor e ensina que em certo ponto, os Moinhos de Vento não são gigantes e temos de descer do Rocinante. Por isso, tantos autores citam o Quixote como parte de sua leitura. Quais são as memórias da sua experiência com o livro de Cervantes?

Affonso Romano de Sant’Anna: Dom Quixote é um acontecimento cultural. Quando do quarto centenário do livro/autor, recentemente, participei de uma leitura publica no Rio, que durou vários dias. O Instituto Cervantes convidou pessoas várias para este mutirão: a leitura ininterrupta, cada um, dia e noite, ia se revezando e lendo o livro. Andei escrevendo algo sobre essa novela/romance ( em "A cegueira e o saber") e também sobre um dos livros que o personagem Quixote lia – o formidável "Tirant lo Blanc" traduzido em português por esse extraordinário Cláudio Giordano, que pertence à estirpe do José Mindlin e do Plinio Doyle. Como todo clássico, o Quixote só cresce com novas leituras.

Aletria:  Nossos vizinhos latinos têm uma fama internacional considerável. Garcia Márquez e Neruda ganharam Nobels, Jorge Luís Borges é referência mundial. Alguns dos nossos maiores autores, como Machado e Guimarães Rosa são bem conhecidos, mas uma vasta gama não é sequer publicada na Europa ou Estados Unidos. Ao que você atribui essa dificuldade dos nossos grandes autores de serem reconhecidos da mesma forma?

Affonso Romano de Sant’Anna:  Não é por falta de bons autores que não ganhamos o NOBEL  até agora. Isso é uma máquina política complexa. Quando eu lecionava na França, nos anos 80, um professor que era do comitê do Nobel me pediu para escrever um arrazoado sobre Drummond.  Mas a coisa é política. Tem mil interesses. Uma vez, nos anos 80 me telefonaram da Veja para intermediar uma entrevista com Drummond, pois estava correndo o boato de que ele era, de novo, forte candidato ao Nobel. Falei com ele, que discretamente ficou na dele. Ele podia dizer como o Borges: "não conceder-me o Nobel é uma velha tradição nórdica". Ademais nem sempre premiam  os melhores de cada pais.

Aletria: Há mais de cem anos, Edgar Allan Poe teorizava que os leitores queriam ler em uma “sentada”, ou seja, textos curtos, de efeitos imediatos. Hoje, a internet está criando um leitor ainda mais veloz. O escritor, especialmente o poeta, que vai encontrar esse leitor, vai seguir qual caminho? Como o senhor vê os desafios dos escritores do mundo atual?

Affonso Romano de Sant’Anna: É, a coisa  da  velocidade é um complicador. Pode ser também um estimulante, é claro. Há um teórico francês: Paul Virilio que especializou-se  em estudar a questão da velocidade em nossa sociedade, estudando como isto altera a nossa percepção e vida. Outro dia li um conceituado critico de arte dizer sobre uma exposição de gravuras, quase que se lamentando, que o problema da gravura é que ela exige muito tempo do expectador. Isto devia ser uma qualidade e não um defeito, a meu ver. A poesia, a boa poesia, a melhor poesia, exige densidade, exige mergulho num tempo interior. Essa cultura contemporânea é um convite à superficialidade. É difícil ler Proust ou Pedro Nava nesse mundo do fragmento e dispersão. Mas sabia que existe um paradoxo dentro da contemporaneidade? Nunca surgiram tantos poetas quanto neste tempo adverso à poesia. E isto é intrigante.
http://www.aletria.com.br/
[Entrevista indicada por Affonso Romano de Sant'Anna , e cedida por João Camilo, de Aletria] 
Edição: Belvedere Bruno

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